A iminência de uma crise alimentar global em meio à inoperância do multilateralismo

A alta de preços elevou a preocupação mundial com segurança alimentar, gerando reações distorcivas de países no comércio global e colocando em xeque a efetividade das organizações multilaterais

No último domingo, 12 de junho, teve início a 12ª Conferência Interministerial da Organização Mundial do Comércio (MC-12). A principal instância decisória da OMC realiza neste momento sua primeira reunião desde o início da pandemia, em um contexto em que as questões sobre segurança alimentar vêm ganhando os holofotes globais — um componente a mais na crise do multilateralismo que já se desenvolve há alguns anos.

Desde 2020 se verifica, em âmbito global, a escalada de preços dos alimentos, motivada pela combinação de fatores climáticos, elevação da demanda e disrupção em elos de cadeias produtivas agroalimentares em função da pandemia. Esse cenário foi significativamente agravado pela guerra entre a Rússia e a Ucrânia — países que são importantes produtores e exportadores de trigo, milho e óleo de girassol, além de fertilizantes e outros insumos agrícolas (leia mais clicando aqui).

Segundo o índice da FAO, agência da ONU voltada ao combate à fome e à desnutrição, o preço dos alimentos em termos reais cresceu 67% entre maio de 2020 e maio de 2022, atingindo um patamar recorde desde o início da série histórica (1990), superando com folga o último “boom de commodities”, ocorrido entre meados de 2007 e 2011 e que ficou marcado por influenciar insurreições populares como a Primavera Árabe.

Com a alta de preços, a questão do acesso a alimentos torna-se bastante preocupante, notadamente para populações mais pobres de países importadores líquidos de alimentos e fertilizantes, como algumas regiões da África e Ásia. Conforme o último relatório divulgado pela FAO[1], as atuais perspectivas indicam que preços mais altos não levarão a uma maior oferta no curto prazo, e que os preços dos alimentos tendem a se manter em patamares elevados, motivados pelo alto custo dos insumos agropecuários.

Com a intenção (declarada) de controlar preços internos, vários países vêm adotando medidas altamente distorcivas, como restrições às exportações, que já atingem cerca de 15% das calorias exportadas em alimentos e 20% dos fertilizantes comercializados globalmente, segundo levantamento do International Food Policy Research Institute (IFPRI). Tal tendência a um “neonacionalismo agroalimentar” tende a agravar a questão dos altos preços em nível global, impedindo os ganhos de eficiência que seriam obtidos com a redução das barreiras tarifárias e não tarifárias ao comércio internacional. Esse é hoje um dos pontos centrais de discussão da Conferência Ministerial 12 que está acontecendo nesta semana, em Genebra.

De acordo com o IFPRI, cerca de 25 países estão impondo barreiras ativas à exportação de alimentos. Políticas de subsídios também têm crescido, com destaque para a Índia e a China, que se situam hoje entre os três maiores fornecedores de subsídios agrícolas distorcivos do mundo, ao lado dos Estados Unidos.

Quadro dos países com restrições às exportações em 2022

No que concerne ao potencial aumento dos estoques públicos para fins de segurança alimentar (PSH), há o entendimento de diversos membros da OMC de que esse tipo de solução deveria apenas ser utilizada em países vulneráveis, a exemplo das nações subdesenvolvidas importadoras líquidas de alimentos, com cláusulas de salvaguarda e de transparência adequadas, limites ao tamanho dos programas propostos e possibilidade de que o desrespeito às regras possa ser combatido por meio da abertura de disputas no sistema de solução de controvérsias da entidade. No entanto, no atual contexto, o que se observa é o pleito pela utilização irrestrita desse tipo de política.

Ainda que compreensível que países busquem uma solução imediata para o controle doméstico dos preços, a paulatina fragmentação do comércio internacional agrícola, que vem se instalando, reduz a eficiência das relações econômicas, fragiliza as cadeias globais de alimentos e torna a economia internacional mais instável.

Tal processo ocorre ao mesmo tempo que assistimos ao declínio do multilateralismo. Pouco a pouco vamos deixamos de ter regras previsíveis para gerenciar disputas comerciais com a inoperância do órgão de apelação na OMC. Hoje, vemos acordos bilaterais e discursos nacionalistas ganharem cada vez mais espaço, justamente em um momento em que precisamos de maior coordenação multilateral para manter os fluxos comerciais de alimentos e combater uma possível catástrofe alimentar.

O Brasil, nesse contexto, tem fundamental relevância, dado que o país se posiciona como o terceiro maior exportador mundial de produtos do agronegócio. Durante a pandemia, o país se posicionou como um fornecedor regular e confiável de alimentos para o mundo, motivado por fatores estruturais como a expansão dos investimentos e ganhos de produtividade.

O agro brasileiro evoluiu em produção e produtividade ao longo de décadas e desenvolveu a capacidade fornecer alimentos a custo acessível. No entanto, a atual conjuntura também tem afetado significativamente os preços domésticos, em um momento de recuperação econômica pós-pandemia no qual questões de renda e emprego seguem preocupantes.

O IPCA registrou um crescimento geral de preços acumulado em 20% entre janeiro de 2020 e maio de 2022, e 32% apenas no que se refere ao grupo “alimentos e bebidas”, no mesmo período. A perda do poder de compra e de renda tem prejudicado o acesso aos alimentos. São 14 milhões de brasileiros a mais em situação de insegurança alimentar grave em 2022, na comparação com 2020, totalizando 33,1 milhões de pessoas em situação de fome, segundo levantamento recentemente divulgado pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional.

Portanto, a crise alimentar global é um dos focos principais da MC-12, e os membros da OMC terão a oportunidade de buscar um entendimento em relação às questões que envolvem a produção e o comércio de alimentos. Seria relevante uma maior regulação com relação a medidas que gerem distorções em mercados agropecuários, como os subsídios distorcivos e as restrições ao comércio — e o Brasil buscará se posicionar nesse sentido.

É possível manter as relações de comércio e buscar maior eficiência dos mercados globais, evitando o aumento da inflação e da insegurança alimentar no mundo. No entanto, para que isso seja possível, a coordenação multilateral deveria prevalecer.

Fonte: InsperAgroGlobal