Com 12% da água doce disponível do planeta, um litoral de mais de oito mil quilômetros de extensão e ainda uma faixa marítima equivalente ao tamanho da Amazônia, o Brasil possui o potencial para se tornar um dos maiores produtores de pescado do mundo. Somente a criação de tilápia aumentou 105% em apenas sete anos (2003-2009). Com todo este potencial inexplorado, o Brasil é um dos poucos países que tem condições de atender à crescente demanda mundial por produtos de origem pesqueira, sobretudo por meio da aquicultura.
Segundo a FAO, a produção pesqueira nacional tem condições de atingir 20 milhões de toneladas/ano até 2030. Com a expansão da aquicultura no país, faz-se essencial a estruturação de um serviço de defesa sanitária animal capaz de atuar com efcácia no controle e na erradicação de doenças, oferecendo ao mercado um produto de qualidade e com baixo risco sanitário.Entende-se por defesa sanitária animal o conjunto de ações e métodos estratégicos para o combate, controle e erradicação de doenças, inclusive as de notifcação obrigatória, que acometem os animais de interesse econômico, com vistas à redução dos riscos e perdas de produção e produtividade do empreendimento aquícola, à promoção da saúde pública e proteção do consumidor e à minimização dos impactos ao meio ambiente. As ações relacionadas à defesa sanitária pesqueira e aquícola baseiam-se em alguns pilares estruturantes: o controle do trânsito nacional e internacional; a padronização do cadastro de estabelecimentos de aquicultura; a defnição de procedimento para o aten- dimento a surtos de doenças; a defnição de lista de doenças de notifcação obrigatória e a rastreabilidade animal.
O que o Brasil tem feito neste sentido?
A partir de 2009, com a criação do Ministério da Pesca e Aquicultura (Lei Federal nº 11.958/2009 e Decreto no 7.024/2009), houve uma intensifcação na publicação de atos regulatórios relacionados ao setor de sanidade aquícola e pesqueira. O Programa Nacional de Controle Higiênico Sanitário de Moluscos Bivalves – PNCMB, instituído por meio da Instrução Normativa Interministerial n° 7, de 8 de maio de 2012, foi o primeiro Programa Sanitário publicado.
O Programa foi instituído em conjunto pelo MPA e Minis- tério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA) e elaborado para monitorar toda a produção do setor destinada ao consumo humano, como ostras, berbigões, vieiras e mexilhões.
O Programa estabelece os procedimentos para coleta de amostras para reali- zação de análises de microrganismos contaminantes e de toxinas em moluscos bivalves e de análises para o monitoramento de espécies de microalgas potencialmente produtoras de toxinas. Em 2015, foi publicado o programa estruturante para toda a cadeia produtiva de animais aquáticos: o Programa Nacional de Sanidade de Animais Aquáticos de Cultivo “Aquicultura com Sanidade” (Instrução Normativa MPA n° 04, de 4 de fevereiro de 2015 e Portaria MPA n° 19, de 4 de fevereiro de 2015), que traça as diretrizes básicas para assegurar a prevenção, o controle e a erradicação de doenças na aquicultura e contribuir para o aumento da produtividade.
A implantação do Programa pelos Órgãos Executores de Sanidade Agropecuária (OESAs) nos estados possibilitará a prevenção da ocorrência de enfermidades e controle ou erradicação de doenças existentes; uma rápida e ef ciente resposta do Serviço Veterinário Oficial (SVO) frente a suspeita de ocorrência de doenças com redução da mortalidade de animais aquáticos de cultivo; aumento da produtividade e incremento da oferta de pescado e derivados e consequente desenvolvimento da aquicultura nacional.
O “Aquicultura com Sanidade” não traz exigências quanto à estrutura física dos estabe- lecimentos de cultivo e sim estabelece regras mínimas de manejo e registro sanitário, para evitar a ocorrência e a difusão de doenças nos cultivos nacionais. O Programa prevê a emissão da Guia de Trânsito Animal (GTA) como documento capaz de auxiliar na certificação sanitária de propriedades por meio da rastreabilidade de produtos oriundos da aquicultura.
Para viabilizar esta exigência, a CNA e o MPA celebraram, em janeiro de 2014, um Acordo de Intensões para o desenvolvimento, aperfeiçoamento e manutenção de módulo de sistemas referentes à defesa sanitária de animais aquáticos, no âmbito da Plataforma de Gestão Agropecuária (PGA), ferramenta que reúne informações sobre a cadeia produtiva na Base de Dados Única do Governo Federal.
A previsão é que, até o final do segundo semestre deste ano, o módulo esteja em operação. Além disso, com a f nalidade de garantir alevinos de melhor qualidade sanitária, assegu- rando com isto o sucesso da cadeia produtiva, está em vias de publicação o Programa Nacional de Monitoramento Sanitário de Alevinos de Tilápias – “Alevino de Tilápia Monitorado”, Programa integrante do Plano Nacional de Certifcação de Formas Jovens de Animais Aquáticos. O Programa será embasado no monitoramento de microrganismos patogênicos relevantes para a saúde animal que causam prejuízos ao aquicultor.
Ainda, visando dar continuidade à regulamentação do setor, o Ministério da Pesca e Aquicultura pretende discutir com o setor produtivo, ainda em 2015, programas sanitários específ cos para a certif cação sanitária de formas jovens de peixes redondos e bagres nativos, camarões e moluscos bivalves. Qual a importância da implantação de Programas Sanitários para a aquicultura? Exemplos de perdas produtivas devido à disseminação de agentes infecciosos estão pre- sentes no mundo todo.
Entre os anos de 2007 e 2010, a salmonicultura do Chile sofreu uma grave crise provocada pela anemia infecciosa do salmão. As perdas foram imensu- ráveis, o que fez com que as autoridades sanitárias chilenas alterassem sua legislação sanitária visando o estabelecimento de medidas rigorosas de biosseguridade1. No Brasil, no ano de 2004, o estado de Santa Catarina foi acometido por um surto de igual magnitude.
A doença das manchas brancas causou uma drástica redução na carcinicultura catarinense. Os produtores e o serviço de defesa sanitária do estado não estavam preparados para um problema sanitário de tamanha gravidade, o que fez com que o vírus se disseminasse rapidamente entre as propriedades por meio do efluente não tratado, do descarte de animais mortos e da ação de predadores que espalharam carcaças entre as fazendas e o meio natural, contaminando inclusive animais de vida livre.
As consequências deste evento sanitário são sentidas até hoje, o que demostra a fragili- dade do sistema de defesa sanitária de animais aquáticos no País. A produção de camarão marinho em Santa Catarina caiu de 4.189 toneladas em 2004 para 214 toneladas em 2013, segundo dados do Centro de Desenvolvimento em Aquicultura e Pesca da Empresa de Pesquisa Agropecuária e Extensão Rural de Santa Catarina (CEDAP/EPAGRI).
Grafico 01 – Evolução da produção catarinense de camarão marinho, entre 2001 e 2013, em toneladas:
Fonte: CEDAP/EPAGRI, 2014 | Elaboração: SUT/CNA
Qual o impacto destas regulamentações para o comércio internacional?
Além da prevenção da disseminação de doenças já existentes, o fortalecimento do serviço de defesa sanitária de animais aquáticos traz embasamento científico para que o Brasil possa barrar importações de produtos que possam impactar negativamente sobre o status sanitário do país. Isto se deve ao fato do Brasil ser signatário da Organização Mundial do Comércio (OMC), organismo regulador das regras de comércio internacional.
A OMC reconhece que seus países membros têm o direito de estabelecer níveis apropriados de proteção para importações de modo a garantir seu estado sanitário vigente. Esta proteção pode ser alcançada pela aplicação de medidas sanitárias que podem, inclusive, restringir o comércio bilateral de determinado produto. Para regulamentar a aplicação dessas medidas, a OMC estabeleceu o Acordo de Aplicação de Medidas Sanitárias e Fitossanitárias (Acordo SPS) que preconiza, para a comercialização de qualquer produto de origem animal, o país exportador deve comprovadamente manter um sistema de inspeção sanitária equivalente ao do importador.
Frente ao exposto, fica claro que a implementação de programas sanitários no país é crucial para o fortalecimento da defesa sanitária, possibilitando que o Brasil desenvolva todo o seu potencial aquícola e alcance o posto de um dos maiores produtores de pescado do mundo.
*Lilian Azevedo Figueiredo é médica veterinária, com mestrado em Saúde Animal. Assessora técnica da Comissão Nacional de Pesca e da Comissão Nacional de Aquicultura da Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA)